Artigo do cineasta Sérgio Santeiro
Publicado no jornal “A Tribuna” em 18/11/2009
Artigo do cineasta Sérgio Santeiro
Publicado no jornal “A Tribuna” em 18/11/2009
Olhos e pés no chão
Já nos acostumamos ver placas, cartazes e indicações no alto, grafites e mapas nas paredes da cidade, mas no chão? Nunca vi ou soube disso até que minha vizinha de Charitas, que os locais chamam de Charita, sem o s, Leila B. falou-nos de seu novo projeto para Niterói. Foi ela que num rasgo de invenção forrou de mosaicos a escada que de sua casa na encosta ia até rua de baixo. Precisou para tanto não só do apoio da Prefeitura, havia que arrumar a escada e seus contornos bem como a rede pluvial que jorra dos morros abaixo, precisou e convocou um mutirão da comunidade em volta para compor os mosaicos plantados nos degraus.
Primeiro acorreram a seu ateliê as crianças, adultos sempre mais arredios e céticos acabaram contagiados com o quebra-quebra de azulejos depois fixados nas telas de suporte. Como as pessoas os mosaicos são cada um cada um, diversos talhados e montados ao jeito da mão que os corta e cola. Podem ser só cores, figuras, frases, ou um pouco de tudo, lá estão alegrando e filosofando no caminho. Brotando no convívio não só afetos e trocas mas ideias,reuniu e deu voz a esta experiência coletiva no seu mestrado em Ciência da Arte, batizando-o de “Mosaico do Lugar” e por visual também guardado em vídeo, melhor ir lá vê-lo em seu lugar, mas não indo pode-se vê-lo longe, bem longe, mistérios do áudio visual.
Desenvolvendo sua reflexão teórica, todo mundo já sabe, não basta fazer, tem que balizar nossa estrada, ensinar o caminho das pedras, fixou-se no conceito de lugar, como a escada um belo achado. O lugar é onde estamos, onde vivemos, acho que é onde alcançamos a pé, depois, depois é o mundo, em que pra se estar é preciso estar ou passar em outros tantos lugares. Sempre ouvi dizer que utopia, ao pé da letra, é o não lugar, algo que se imagina, que se sonha, mas que não existe, é inexistente.
Com efeito é algo que não existe ainda. Tive a honra, difícil e laboriosa, de ainda estudante traduzir ao português o clássico da sociologia, que cursava, o “Ideologia e Utopia”, de Karl Mannheim, e lá aprendi que utopia não é devaneio, não é delírio, é projeto, é algo para ser, é uma antecipação do que existirá, é um modelo do que a vida deva ser. Assim é com Thomas Morus, Leonardo ou Santos Dumont com suas utopias em algum tempo realizadas.
Pois a nova utopia de Leila B., seu atual projeto, é ampliar o lugar, a topia, desde o seu, imediato, onde mora, para um maior, em que também mora, sua cidade, Niterói. Não vou aqui, por ora, reclamar da expansão urbana, mas quero frisar que melhor seria se cada um ampliasse o seu quintal, o seu lugar, de que cada um forçosamente deve cuidar para que não seja devastado por intempéries, deve varrê-lo, reciclá-lo, lixo e folhagem , parte e digno de nossa convivência.
Não é que inventou de incrustar no próprio chão um mapa síntese do município, com destaque dos limites e pontos de referência de nossa geografia física e espiritual, distribuídos em pelo menos 12, como os apóstolos, lugares em vários cantos da cidade. Compôs uma técnica de fixação permanente que nos permitirá não só vê-los como animei-me pisá-los, serão parte não estorvo de nossos caminhos. Não me perguntem como, não sei, é a sua utopia, é a da Leila, e como projeto, como proposta, é como um sonho que, diz-nos a canção, sonhado junto é a realidade.